O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento de casos que envolvem os chamados crimes contra a liberdade sexual, previstos no Código Penal, constatou que o depoimento de vítimas de estupro ou de assédio sexual tem grande valor como prova em uma ação judicial. A justificativa seria a de que em geral, este tipo de crime é praticado na clandestinidade, sem a presença de testemunhas.
O tema foi reunido na “Pesquisa Pronta”, ferramenta disponibilizada no site do STJ para facilitar o trabalho de quem deseja conhecer o entendimento da Corte sobre casos semelhantes. Por meio da consulta ao tema Valor Probatório da palavra da vítima nos crimes contra a liberdade sexual, é possível ter acesso a 114 acórdãos, decisões tomadas por um colegiado de ministros do Tribunal.
Um dos acórdãos assinala que em se tratando de crimes contra a liberdade sexual, que geralmente são praticados na clandestinidade, a palavra da vítima assume relevante valor probatório, principalmente se confirmada por outros elementos de prova dos autos, como no caso, em que é reforçada pelas declarações prestadas pelas demais testemunhas de acusação.
O STJ tem entendido ainda que a ausência de laudo pericial não afasta a caracterização de estupro, visto que a palavra da vítima tem validade probante, em particular nessa forma clandestina de delito, por meio do qual não se verificam, com facilidade, testemunhas ou vestígios. Em outro acórdão, o STJ firmou entendimento de que, caso esses crimes sejam praticados contra crianças e adolescentes, justifica-se ouvir a vítima na modalidade do depoimento sem dano, por psicólogo, em sala reservada, de modo a respeitar sua condição especial de pessoa em desenvolvimento.
A nova ferramenta oferece consultas a pesquisas prontamente disponíveis sobre temas jurídicos relevantes, bem como a acórdãos com julgamento de casos notórios. Embora os parâmetros de pesquisa sejam predefinidos, a busca dos documentos é feita em tempo real, o que possibilita que os resultados fornecidos estejam sempre atualizados. A Pesquisa Pronta está permanentemente disponível no portal do STJ. Basta acessar Jurisprudência > Pesquisa Pronta, na página inicial do site, a partir do menu principal de navegação.
Para a psicanalista Giselle Groeninga, diretora de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, a nova ferramenta é importante, mas, da mesma forma que, por exemplo, a estatística, a ferramenta pode mostrar o que não é relevante e, assim, perder-se de vista o que é fundamental na área do Direito de Família – cada caso é um caso. “A ferramenta dá visibilidade, mas a interpretação qualitativa, e de aspectos da subjetividade – necessariamente envolvida nestes casos – é de rigor. E, sobretudo, nas situações relativas às denúncias de abuso sexual, devemos ter todo o cuidado na análise das provas. Para usar a linguagem da Psicanálise, ao manifesto – o aparente – não corresponde necessariamente o latente. E, como se sabe, a Psicanálise nasceu justamente em função dos pacientes tomarem como verdade real o que era fruto de fantasias. Ponderação necessária, mas que não exclui, claro, a ocorrência dos abusos. Por óbvio que à palavra da vítima deve ser dado muito valor; seja a denúncia falsa ou verdadeira, é certo que o contexto da vítima é o de violência psíquica. Violência ocasionada pelo abuso, se ocorreu, ou violência psíquica que se desencadeia numa falsa denúncia”, comenta.
Segundo Giselle Groeninga, a mudança que se verifica ao se enfatizar a palavra da vítima é que esta não é vista como agente provocador do abuso. “Seja como for, denúncia falsa ou verdadeira, ela é vítima. Mas também não devemos esquecer as duras lições trazidas pelos casos de alienação parental que culminam em falsas denúncias. Clama a atenção que nestas situações – e observei esta triste realidade em diversos casos em que trabalhei – o suposto abusador não é analisado com o instrumental da Psicologia. E do ponto de vista, sobretudo da Psicanálise, a denúncia deve necessariamente ser contextualizada em relação à dinâmica psicológica existente. Ou seja, devem ser avaliados com o instrumental da Psicanálise a vítima, o agressor e outras pessoas que possam ter influência no contexto”, afirma.
Giselle Groeninga explica que o direito a um julgamento justo, com amplo direito ao contraditório, deve viger também, e de forma especial, nestes casos. De acordo com ela, na maioria dos casos de falsa denúncia, a vítima acredita que o abuso aconteceu. Conforme a psicanalista, os dados da pesquisa podem auxiliar no combate à violência sexual, pois resgatam a importância da queixa e da palavra, mais no sentido do que transmitem e não somente da realidade fática. “E, à medida em que se atribui o devido valor ao instrumental da Psicanálise, à análise do contexto e sua interpretação, há maior segurança para todos, vítimas que podem ser acolhidas, seja a denúncia verdadeira ou falsa, e supostos agressores. Com o uso do instrumental próprio, possivelmente os casos em que efetivamente ocorreu a violência sexual serão melhor esclarecidos e as pessoas confiarão mais para que se apurem suspeitas. Muitas vezes, o medo de que uma suspeita seja tomada de forma literal, o que é frequente nestes casos, leva a um medo em se buscar a necessária ajuda e, se for o caso, o tratamento condigno da questão”, diz.
Ela ainda cita que o psicanalista contemporâneo de Freud, Sándor Ferenczi, que abordou os aspectos psicológicos, a realidade interna e os da realidade externa, apontou que à parte o trauma, a forma como se o elabora, as possibilidades de verbalização, fazem toda a diferença. “Como apontado, muito danoso também é tomar-se como realidade externa o que pode ser produto da realidade interna e, nestes casos, o depoimento pode ter o efeito inverso. Faço uma última ponderação quanto ao que era denominado depoimento sem dano. Do meu ponto de vista, a escuta especializada é fundamental, não só a escuta da vítima, mas também do suposto agressor. Pelo que pude verificar, tal modalidade atende ao rito processual, mas cabe a pergunta se não deveria ser o inverso – o processo atender às necessidades dos envolvidos e não o inverso. Mais uma vez lembro Ferenczi, para quem a técnica deve adequar-se ao paciente, e não o inverso”, conclui.
Fonte: STJ